Cordilheira do Espinhaço.

Sobre a importância estratégica da articulação dos pontos de cultura da Reserva da Biosfera do Espinhaço:

Megabiodiversidade da reserva da biosfera

Reportagem Raquel Coutinho
http://www.revistasagarana.com.br/revista27/serradoespinhaco.htm

O povo que habita a Serra do Espinhaço é peça-chave para conservação de sua diversidade biológica. Qualquer iniciativa preservacionista que desconsidere o fator humano corre o risco de desperdiçar esforço e dinheiro.

Mais de 642 mil pessoas vivem dentro dos limites da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço (RBSE). O primeiro critério utilizado para designar uma reserva da biosfera, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), expressa a relevância das formas de interação do homem com o seu meio: "Englobar um mosaico de sistemas ecológicos representativos das principais regiões biogeográficas, incluindo uma gradação de intervenções humanas no sistema”.

Na lista de prioridades do Programa Homem e Biosfera – Man and the Biosphere (MaB) –, da Unesco, as pessoas ocupam o um dos pontos mais altos. Por isso, conhecer os mecanismos dessa convivência é o primeiro passo na busca por um desenvolvimento econômico que seja sustentável do ponto de vista sociocultural e ecológico, uma das funções básicas da reserva da biosfera.

Assim como as belezas naturais, as riquezas históricas, arquitetônicas e culturais fazem da Serra do Espinhaço um destino turístico de grande potencial, que já angaria investimentos expressivos. Associadas ao turismo, a agricultura familiar, as manifestações de arte popular e a botânica são exemplos de atividades que, juntas, podem compor estratégias de manejo sustentável para a geração de renda e fixação do homem no campo.

Monocultura e turismo desordenado

Por outro lado, os principais usos e ocupações do solo, identificados atualmente na cadeia do Espinhaço, são monoculturas, mineração, garimpo, urbanização, turismo desordenado, queimadas, extrativismo vegetal, pecuária extensiva e indústrias. Dentre os impactos relacionados a essas atividades, podem-se citar a poluição, a perda da diversidade genética, as epidemias e endemias, a erosão, o assoreamento de rios, a fragmentação de ecossistemas, a contaminação de mananciais, a desigualdade social, o êxodo rural, a perda da identidade cultural e a desertificação do solo, entre outros.

O biólogo Miguel Andrade, representante da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) no Comitê Estadual da RBSE, acredita ser preciso potencializar a auto-estima e autonomia das populações locais e disponibilizar canais para sua participação efetiva na constituição das políticas públicas sociais, culturais e ambientais. “A carência de meios de interlocução entre comunidades e especialistas é um grande obstáculo. A política de promoção do turismo, por exemplo, deve ser inclusiva, não excludente. O conceito de ‘jóia turística’ passa impreterivelmente pela preservação da cultura, peculiar a cada região. O que assistimos, no entanto, é à marginalização da população local, na medida em que o destino turístico ganha visibilidade”, lamenta Miguel.

Esforço de pesquisa

Para Ricardo Machado, diretor para o Cerrado da organização não-governamental (ONG) Conservação Internacional (CI), a falta de conhecimento sobre a importância da Serra do Espinhaço para o equilíbrio ecológico é a maior ameaça à reserva. “Legislação e fiscalização são formas limitadas de conservação, que não trazem resultados em longo prazo. Enquanto não houver entendimento e negociação entre governo, sociedade e empresas, vamos ficar sempre ‘correndo atrás’ para minimizar os impactos. Há que se ter uma postura mais ativa, principalmente da sociedade, no processo de ocupação e planejamento”, afirma Machado.

Ainda segundo Miguel, esse desconhecimento é até mais grave do ponto de vista científico. “A megadiversidade e complexidade dos ecossistemas que compõem a Serra do Espinhaço demandam esforço de pesquisa muito além do que se vê hoje”, diz. Paralelamente, a falta de um levantamento sistemático da cultura oral, história e folclore das comunidades situadas na região tem levado à perda de sua identidade e memória.

Sete reservas da biosfera

Entendida como o espaço terrestre onde se desenvolvem os seres vivos, a biosfera é composta pela atmosfera (troposfera), crosta terrestre (litosfera), água (hidrosfera) e pelo conjunto de todos os ecossistemas do planeta. Existem no mundo 482 reservas da biosfera, distribuídas em 102 países. Ainda que sejam declaradas pela Unesco, as reservas da biosfera são propostas por iniciativa de cada país, responsável também por sua administração. O Brasil conta hoje com sete reservas da biosfera — RB Mata Atlântica, RB Cinturão Verde de São Paulo, RB Cerrado, RB Pantanal, RB Amazônia Central, RB Caatinga e RB Serra do Espinhaço — que, juntas, somam 1,3 bilhão de km2, correspondente a 15% do território nacional.

Lançado pela Unesco em 1971, o Programa Homem e Biosfera promove a cooperação científica internacional na busca pela harmonia nas relações entre os seres humanos e o meio ambiente. O marco estatutário, definido durante a Conferência Internacional das Reservas da Biosfera, em 1995, em Sevilha (Espanha), estabelece os principais parâmetros para reconhecimento e implementação de uma RB.

Aprovada com louvor

Além de ser significativa para a conservação da diversidade biológica, a região precisa ter um nível de articulação política que permita o envolvimento e participação de um grupo razoável de organizações governamentais, não-governamentais e de interesse privado na implementação da RB. Nesse aspecto, Miguel Andrade acredita que a Serra do Espinhaço está no caminho certo. “É possível perceber um diálogo maior entre segmentos que até pouco tempo não existia, ou era raro, como governo, setor empresarial, ONGs e centros de pesquisa. O Comitê da RBSE reúne 28 instituições das mais variadas”, conta.

Uma vez reconhecido o potencial para implementação da RB, outros critérios foram considerados para definição da área da reserva, como delimitação geológica e geomorfológica; unidades de conservação instituídas; dados científicos; articulação política; bacias hidrográficas; apoio logístico (infra-estrutura, estações de pesquisa e monitoramento); culturas tradicionais; possibilidade de ampliação; e conexão com outras reservas.

A Serra do Espinhaço reúne elementos que extrapolam tais exigências e conferem as condições ideais para a implementação de uma RB. A proposta de criação da reserva foi aprovada com louvor pela Unesco, em junho de 2005, evidenciando o mérito técnico, competência e articulação das entidades envolvidas e, acima de tudo, a importância da região em termos de diversidade natural e cultural. “O próximo passo é investir no desenvolvimento humano, tecnológico, científico, político e cultural da RBSE, no sentido de torná-la uma unidade de planejamento territorial”, afirma Miguel Andrade.

O Espinhaço começa na Serra de Ouro Branco, no Quadrilátero Ferrífero mineiro, sobe cortando o Estado, passa pela região do Alto Jequitinhonha, atinge o Sul da Bahia e se estende até o maciço da Chapada Diamantina
A arquitetura colonial, o barroco, a religiosidade, as manifestações folclóricas como o congado e a folia de reis, a tradicional culinária e o artesanato. E a ainda as serras da Piedade, Moeda e do Curral são os trechos mais influenciados pela urbanização da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Mosaico de riquezas

O caminho segue a trilha da formação geológica, alcançando a Serra do Cipó, com seus bucólicos vilarejos, fazendas centenárias e tambores do candombe. Em Conceição do Mato Dentro, a Cachoeira do Tabuleiro, do alto de seus 273 metros, tira o fôlego dos visitantes. As belezas se sucedem, cada uma com seu encanto particular. Congonhas de Minas, Serro, Santo Antônio do Itambé.

Dentro dos limites de Diamantina, Patrimônio Cultural da Humanidade, encontram-se Biribiri, São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde, distritos que conquistaram espaço entre os atrativos turísticos de Minas com seu charme e hospitalidade (leia reportagem nesta edição). A RBSE alcança, então, o Vale do Jequitinhonha, de gente simples e cultura densa. As bonecas de cerâmica, o artesanato em cabaça, os grupos de música e teatro são linguagens que traduzem as raízes do Jequitinhonha.

Esse mosaico de riquezas, aqui resumido de forma quase leviana, compreende um universo de possibilidades ainda pouco explorado para o desenvolvimento sustentado da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço.

Um bilhão de anos

Dos 25 hotspots — biomas com maior biodiversidade e, ao mesmo tempo, mais ameaçados — existentes no planeta, dois ocorrem no maciço do Espinhaço: o cerrado e a mata atlântica. A cadeia de montanhas apresenta também o ecossistema de caatinga, principalmente na sua porção norte, próximo ao Vale do Jequitinhonha.

Em formação há mais de um bilhão de anos, o Espinhaço alterna altitudes de 700 m a 2.072 metros — o Pico do Sol, na Serra do Caraça, é considerado o ponto mais alto —, com diferenças mínimas de largura, que variam 50 a cem quilômetros. Divisor de águas das bacias dos rios São Francisco, Doce e Jequitinhonha, a serra conta com exuberantes paisagens, formadas por despenhadeiros, picos, vales, paredões, cachoeiras e cânions.

Dentro dos 3,07 milhões de hectares da RBSE, em Minas Gerais, existem 12 unidades de conservação de proteção integral: Parques Nacionais da Serra do Cipó e das Sempre Vivas, Parques Estaduais do Itacolomi, da Serra do Rola Moça, do Rio Preto, do Biribiri, do Pico do Itambé e da Serra do Intendente, Estações Ecológicas Estaduais do Tripuí e de Fechos, e Parques Naturais Municipais do Ribeirão do Campo e do Salão de Pedras. Outras 27 unidades de conservação são contabilizadas na área da reserva.

Espécies ameaçadas

Os campos rupestres são uma fitofisionomia (ou subgrupo) do cerrado, característica da Serra do Espinhaço. Associados a altitudes acima de 900 metros, com solos rasos, pedregosos ou arenosos, e plantas rasteiras, destacam-se pela delicadeza, complexidade e alto nível de endemismo — existência de espécies de flora e fauna que ocorrem somente em uma determinada região do mundo.

Das 538 espécies de plantas ameaçadas de extinção em Minas Gerais, 81 estão na mata atlântica, 19 na caatinga, 73 no cerrado e 351, que correspondem a 67% do total, ocorrem nos campos rupestres. A canela-de-ema-gigante (Vellozia gigantea) e a microorquídea Constantia cipoensis são exemplos de espécies endêmicas da Serra do Cipó, considerada a mais rica região em termos de biodiversidade do Brasil, com cerca de 1.600 variedades de flores.

Tiro no pé

As ameaças, infelizmente, estão por toda parte. Ao sopé da serra, pode-se citar a substituição da vegetação natural por monoculturas, principalmente a de eucalipto. Essa tendência é acentuada pela necessidade de abastecimento dos alto-fornos das indústrias siderúrgicas da Companhia Vale do Rio Doce.

A expansão urbana e ocupação desordenada também trazem impactos negativos consideráveis, somadas à falta de infra-estrutura para receber o fluxo turístico crescente. Para Ricardo Machado, “o ideal é que o controle e planejamento desses processos sejam realizados no nível das administrações municipais”.

A vocação minerária é vista como o maior risco à biodiversidade da Serra do Espinhaço. Minério de ferro, ouro, diamante, manganês, quartzito, cromo e diversos outros são encontrados em diferentes pontos do maciço. Uma situação, em particular, tem tirado o sono dos ambientalistas nos últimos tempos: a instalação da MMX Minas-Rio Mineração Ltda. nos municípios de Conceição do Mato Dentro, Serro e Alvorada de Minas.

Recursos escoados

Com pretensão de começar a operar em 2009, o empreendimento compreende a instalação de uma usina de concentração em Minas e um mineroduto de 525 quilômetros de extensão, que levará o minério até o município fluminense de São João da Barra. As preocupações referem-se principalmente ao volume de água que será bombeado pelo mineroduto — que pode chegar a 5 cinco milhões de litros por hora — e à descaracterização de uma das mais belas regiões da Serra do Cipó.

“O Espinhaço é, por si só, um corredor ecológico extremamente delicado. Em uma intervenção desse porte, sua complexidade biogeográfica não pode ser pano de fundo, mas deve encobrir qualquer tipo de empreendimento”, alerta Miguel Andrade.

Apesar de reconhecer a necessidade de desenvolvimento econômico, o conceito de reserva da biosfera não admite que esse crescimento seja perseguido a qualquer custo. Mesmo os benefícios oriundos da instalação de um empreendimento de grande porte em uma área com as características da Serra do Espinhaço, podem e devem ser questionados. A geração de empregos para a população, por exemplo, esbarra no problema da baixa qualificação da mão-de-obra local. Além disso, o aumento da arrecadação do município não significa, necessariamente, maiores investimentos em projetos socioculturais e ambientais na região. Há sempre o risco eminente de que esses recursos sejam escoados pelo mineroduto, junto com a água do Rio do Peixe.